Sessão nova no espinafrando! rúcula X agrião trará sempre a comparação da mesma obra em duas mídias diferentes. A salada de hoje traz o embate entre Ghost World (a HQ indie de Dan Clowes) e Ghost World (o filme indie roteirizado por Dan Clowes). Enjoy!
A HQ
Tem coisas que duram para sempre. Tem coisas que ficam datadas e perdem o frescor, como aquela fruta em cima da mesa que sempre é preterida em favor do chocolate até apodrecer. E tem coisas que seguem sempre geniais através das gerações, mas apenas durante uma certa idade.
É o caso deste Ghost World: parece eternamente perfeito para quem tem 20 e poucos anos e é chegado em cinismo com uma dose de niilismo.
Ghost World é uma coletânea de contos do cotidiano de 2 amigas que acabaram o colegial, recheado de diálogos ácidos e voláteis, como na vida real. Ou como na vida real de rebeldes sem causa com quase duas dezenas de aniversários comemorados.
Não há muita história aqui. Apenas Enid e Rebecca perambulando por aí, espinafrando™ tudo que passa pela frente. Mas veja bem, as 2 não são cabeças de vento. São mordazes. E sagazes. E também conseguem perceber quando pisam na bola e ultrapassam a linha que separa o sarcasmo da crueldade. Mesmo que seja depois e sem admitir (pelo menos publicamente).
No subtexto, temos um retrato convincente daquele período final da adolescência, em que as certezas que saem da boca são absolutas. E em que as dúvidas que ficam pra dentro são imensuráveis.
Ghost World é pra ser lido ao som de Dias de Luta do Ira! Como o espinafrando já deixou de ser filho e passou pro outro lado da paternidade, os sentimentos que mais marcaram a leitura foram de pena dos personagens e esperança no futuro. Mas aquele jovem espinafre do fim dos anos 90 teria adorado e dito que é a obra mais séria que já passou pela história das histórias em quadrinhos. Vou reler quando chegar aos 40 pra ver o que acho.
Ghost World foi publicado pela 1ª vez no Brasil em maio desse ano pela GAL EDITORA, apesar de ter nascido em 89 (de forma seriada numa coletânea de quadrinhos indendentes do próprio Dan Clowes) e ter sido lançada em 1997 (em formato de livro) lá fora. Comprei o meu na Comix.
O FILME
Comprei o filme numa daquelas revistas com DVD por uns R$9,90, em meados de 2003, se não me falha a memória. Totalmente por acaso: confundi o nome com Ghost Dog, um filme de samurai e máfia passado em Jersey que tinha ouvido falar bem – do Jim Jarmusch, com Forrest Whitaker – e que ainda não vi.
Decerto, a confusão nasceu com o Ghost World ter sido batizado de Mundo Cão por aqui. Fiquei com o fantasma e o Dog na cabeça.
Passada a surpresa/desapontamento inicial, eis que descubro uma jovem Scarlett Johansson num papel que mais parece a versão jovem e imatura da Charlotte de Encontros e Desencontros (certeza que a Sofia Coppola descobriu a moça aqui). Ei, tem também aquela menina do Beleza Americana, a Thora Birsch! E Steve Buscemi, o Mr. Pink. Ah, e é baseado em quadrinhos. Que a Time elegeu entre os 10 melhores de todos os tempos. E o roteiro foi indicado ao Oscar, veja só. Talvez tenhamos algo bom em mãos, afinal.
Tudo isso foi lá em 2003. Revi o filme agora, após ler a HQ. E descubro que tenho uma pequena pérola na minha coleção.
Pra começar, é bem diferente do material original, apesar de ter cenas cuspidas e escarradas da fonte. Ainda bem! Se fosse adaptação literal, o filme teria só uns 20 minutos. A estrutura de contos cede lugar a uma história bem desenvolvida. As situações da HQ continuam no filme, às vezes literais, às vezes alteradas na forma, mas não na essência.
Não sei se foi a mão do diretor ou se Clowes é muito criativo, mas o filme é bem mais leve em tom. As meninas impressas soam muita opressivas e oprimidas, aquele tipo de jovem que acha que tem cabeça de 80 anos. Já as garotas de carne e osso parecem mais vivas (haha), são mais sarristas do que rabugentas.
Todo o elenco está afiadíssimo, incluindo o monte de pontas de semi-famosos (entre eles, dois velhos conhecidos de Seinfeld: o Babu – que deixou de ser paquistanês pra virar grego – e o executivo da NBC Russell – aquele que dá sinal verde para o piloto de Jerry e George, se apaixona por Elaine e some do mapa antes de aprovar a série). Mas o show é comandado por Thora e Steve: carisma e talento que transbordam.
Ah! A trilha sonora é boa pacas: vai de Buzzcocks ao pop indiano dos anos 60, passando pelas raízes do blues (ou ragtime, como diria o Seymour, personagem de Buscemi no filme) e jazz.
Um caso raro de filme que é melhor que o livro.