L.O.A.S. – Queen Crab

Queen Crab, ou Rainha Caranguejo numa tradução livre, é uma graphic novel… diferente. Caiu em minhas mãos há três semanas, totalmente por acaso, e só tive tempo de ler semana passada.

Estava fuçando no Comixology em busca da primeiro edição de Saga, que promete ser a nova obra-prima de Brian K. Vaughan, quando vi essa capa aí de baixo. Chama a atenção, não?

Queen Crab

A sinopse atiçou: “Na tradição de David Lynch e Stephen King (…)”, “(…) Essa é uma história de vingança, desejo, violência e insanidade (…)”. Nunca havia lido nada do Jimmy Palmiotti, veterano da indústria dos comics, conhecido mais pelo seu trabalho como colorista e por ter criado a linha Marvel Knights, uma abordagem mais “realista”/violenta dos heróis urbanos da Casa das Ideias (Demolidor, Justiceiro…). Isso não me impediu de perguntar a ele (no twitter) qual era o lance desse livro. E o cara foi gentil o suficiente para responder, indicando algumas resenhas que comparavam a história com o universo de David Cronemberg. Sensibilidade, fora do comum e o melhor gibi que você lerá nessa semana foram outros adjetivos recorrentes. O suficiente para investir US$5,99 (ei, são 66 páginas e uma história fechada! Bem diferente dos US$3,99/21 páginas por edição de Ultimate Spiderman).

A rainha do título é Ginger, uma mulher comum às vésperas de seu casamento. Ginger mora numa casa chumbrega num bairro chumbrega (para o padrão de Nova York, claro), tem um emprego chato (onde é assediada pela chefe), é traída e trai o noivo (mas sem aquela coisa de dar o troco. É mais como em Mad Men, onde todo mundo fode todo mundo e todo mundo finge que não sabe de nada. Daí o trocadilho intraduzível do título – Crab pode significar tanto caranguejo quanto “chato”, aquela espécie de piolho que prolifera na região púbica de quem tem uma vida sexual mais ativa do que o normal).

Ginger se casa e não vive feliz para sempre. Sua noite de núpcias é interrompida por um telefonema e sua lua-de-mel é adiada por um funeral. E, numa reviravolta incomum, ela ganha um par de patas de caranguejo no lugar dos braços. O que leva a novas reviravoltas e algumas elipses temporais.

Queen Crab

Terminada a leitura, o artigo que me veio a cabeça foi esse aqui, do André Forastieri. Principalmente esse último parágrafo, inspirado e inspirador, que peço licença pra reproduzir aqui:

Torço por uma explosão de seguidores de Kenneth Tynan, que Paulo Francis me apresentou na “Ilustrada”. Tynan uma vez esculhambou um filme de Michelangelo Antonioni assim: “Nove décimos do trabalho do crítico é demolir o ruim para abrir caminho para o bom. Antonioni está bloqueando a rua”.

Vamos começar a demolir, pois.

Queen Crab não é uma história de ação, nem um romance, tampouco o bizarro pelo bizarro. E acredite, uma mulher com braços de caranguejo é bastante bizarro. Queen Crab é, acima de tudo, um grande estudo de personagens. E nesse sentido, acaba andando mais para o lado do que para a frente. Não se pode dizer que os personagens são mal construídos, mas daí a dizer que suas personalidades são bem definidas e que parece que têm vida própria já é passar ao largo do bom senso. Os coadjuvantes (a irmã, a chefe, o amante, o marido) possuem pouco espaço na trama, e têm atitude blasè demais. Não dá pra sacar se de propósito ou não, e isso tira pontos da narrativa. E Ginger… Bem, Ginger até parece gente de verdade. Pelo menos, antes do incidente. Depois disso, cai na vala comum de personagens anestesiados, tem um rápido rompante de fúria e vingança… E volta a encarar tudo de forma mais zen do que um monge tibetano, sob a justificativa de que ganhou uma chance de recomeçar. Mulher, pelamor, você passou por duas experiências mais do que intensas (vamos deixar dessa maneira, pra não estragar a surpresa de quem quiser ler), sem mencionar o fato de que tem MALDITAS PATAS DE CARANGUEJO NO LUGAR DOS BRAÇOS. Cadê o sangue nas veias? Cadê a loucura? Cadê o desespero? Cadê o trauma, enfim? Fugiram com seu estofo.

A estranheza da premissa e do design, no final, também deixam uma sensação de terem sido mal aproveitados. Mesmo que a intenção dos autores tenha sido a de criar uma cena Lynchniana, no melhor estilo Twin Peaks, fazem falta mais cenas de cotidiano, que explorem a adaptação da Rainha Caranguejo. Coisas banais como ter que fazer uma ligação telefônica ou acender um cigarro até são citadas rapidamente, mas logo são deixadas de lado. Mais coisas como essas, além de trazerem um toque de verossimilhança para o fantástico, poderiam ser a chance de explorar e criticar várias facetas do preconceito com o diferente e dos desafios da acessibilidade.

A arte de Artiz Eigurem não ajuda. E a crítica não tem a ver com o estilo indie. Mas com a dificuldade do artista em trabalhar com proporção e perspectiva. Quem alguma vez já reclamou da notória falta de noção de anatomia humana do Rob Liefeld, vai encontrar em Artiz um desafiante à altura.

Queen Crab

Por fim, o texto. Os monólogos interiores, principalmente na primeira metade do livro, são muito bons. Revelam uma mulher cheia de personalidade, mesmo que sem a externar. É o bom e velho jogo de aparências, necessário à convivência em sociedade: quem nunca engoliu uma frase para não criar um conflito? É pena que a qualidade do primeiro ato não se mantém por todo livro. Outro ponto que deixa a desejar é a falta de poder de síntese: Palmiotti é verborrágico (quase num nível @espinafrando ;-)), talvez para suprir a falta de expressividade da arte de Artiz. Tudo bem para um livro em prosa, mas pecado mortal para uma narrativa em imagens, seja um filme, seja uma história em quadrinhos.

Talvez, muitos dos problemas sejam explicados pela natureza do projeto: Queen Crab foi o primeiro projeto de Palmiotti financiado pelos fãs, através do Kickstarter (um site de crowdfunding), e apenas distribuído pela Image Comics. O que significa que os autores não apenas tiveram total controle criativo, como também tiveram total e completa responsabilidade sobre o resultado final. A editora do livro foi Amanda Conner, ilustradora que publicou trabalhos na Marvel e DC (Poderosa foi o mais proeminente) e que também é esposa de Jimmy. E é possível que aí esteja o xis da questão. Se por um lado, um gibi estranho carregado de nudez e sexo e com alguma violência gráfica enfrentaria no mínimo resistência de uma grande editora, por outro, acredito que a falta de um editor forte, com mais experiência narrativa, poderia ter podado um pouco os textos de Palmiotti, exigido mais de Eigurem e, principalmente, trabalhado melhor o ritmo da história.

Em resumo, @espinafrando, você acha melhor deixar Queen Crab de lado? Não. Acho que o conceito tem algo de especial, o livro tem partes boas sim e há bastante potencial para ser melhor desenvolvido numa segunda tentativa.

(Jimmy Palmiotti disse que, a princípio, é uma história fechada —mesmo que tenha um final aberto. Perguntado sobre a possibilidade de uma continuação, declarou que as vendas foram decentes e que só o tempo dirá)

E, por último, sempre acho que você deve formar sua própria opinião. Essa aqui é a minha. Mas vale o alerta: Queen Crab não foi feito pra agradar a todos. E nem o espinafrando.com. Provavelmente, devo perder um seguidor ilustre no Twitter depois destas loas. Mas, Jimmy, encare como uma oportunidade para melhorar. Se fossem só elogios, você não teria nada para trabalhar. 😉

 

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