Depois que a Disney e filme família viraram sinônimos de moralismo e ultraconservadorismo sem graça (e nem sempre foi assim —vá atrás dos clássicos!), a Pixar assumiu como último bastião da animação com alma, capaz de divertir e emocionar adultos e crianças. Último? Não. Um pequeno estúdio em Bristol, Inglaterra, ainda resiste bravamente. Pequeno é licença poética: o estúdio é a Aardman, criadores de Wallace & Gromit, do excelente A Fuga das Galinhas e, por incrível que pareça, do incrível clipe do Peter Gabriel (!), Sledgehammer.
E a Aardman lança nesta sexta, 10/05, seu 1º longa em 3D: Piratas Pirados! (The Pirates! Band of Misfits, nos EUA e Austrália / The Pirates! In an Adventure with Scientists, no original). Estive lá pra conferir e este é um relato do que você pode esperar.
De forma maquiavélica, primeiro vou bancar o adulto chato: o nome do filme em português ficaria bem mais legal se fosse uma tradução mais ao pé da letra da versão americana, algo como “Os Piratas! Esse Bando de Desajustados” (embora concorde que Piratas Pirados! tenha muito mais apelo junto ao público infantil, que é quem vai carregar a bilheteria —e os pais— nas costas).
Mais uma: no som original, o elenco de dubladores parece fabuloso – Hugh Grant (Um Grande Garoto), Martin Freeman (The Office U.K., O Guia do Mochileiro das Galáxias e do vindouro O Hobbit), Imelda Staunton (Vera Drake), David Tennant (Dr. Who), Jeremy Piven (Entourage), Salma Hayek (Frida, Um Drink no Inferno). Parece, porque vi uma cópia dublada em português e não sei dizer se a trupe mandou bem ou não.
Dito isso, é a vez da criança interior falar: Piratas Pirados! é um delicioso passatempo para as tardes de fim de semana, e tenho certeza que meu filhote, o espinafrinho, irá adorar quando vir. Assim como eu adorei!
Enquanto a Pixar se destaca pela sensibilidade, a Aardman manda bem no humor. Provavelmente pela origem britânica, esse povo que praticamente inventou a finesse e a ironia. Muito embora o tipo de humor que você vai encontrar nessa aventura nos mares vitorianos seja completamente diferente: Piratas Pirados! usa e abusa do humor pateta, no melhor dos sentidos. A começar pelos nomes dos personagens principais: o capitão pirata se chama Capitão Pirata; o pirata albino, Pirata Albino; a mulher que se disfarça de homem e nutre uma paixonite secreta pelo Capitão ganha a alcunha de Pirata Surpreendemente Curvilínea… É o tipo de humor “Ralph”, dos Simpsons, que batiza seu gatinho de Gatinho. É estúpido e engraçado, mas tem que ser bem feito pra não ficar apenas estúpido.
O filme começa emulando uma das melhores fontes possíveis: Asterix, o gaulês. É praticamente a típica estrutura de introdução dos livros de Goscinny e Uderzo, com nova ambientação. No lugar da Gália, os 7 mares. O ano deixa de ser 49 d.C.: estamos em 1837. Troque o Império Romano pelo Britânico e os rebeldes celtas pelos bucaneiros e o cenário está armado.
A trama é simples e inventiva: a comunidade dos piratas dá o prêmio de Pirata do Ano para o capitão que acumula o maior butim no exercício. O Capitão Pirata sempre concorre e nunca ganha, mas isso não o impede de sonhar e se inscrever mais uma vez. Só que a concorrência o faz comer poeira e ser humilhado pela comunidade. Embuído pelo otimismo que só os idiotas conseguem ter em mais alto grau, ele e a tripulação zarpam da ilha pirata com o objetivo de saquear o maior número de navios possível. E aí começa uma sequência hilariante de azar: cada navio abordado tem de tudo, menos ouro. Leprosos, excursão escolar, expedição científica…
Expedição científica? Está explicado o título original (que é o nome do livro que inspirou o filme, de Gideon Defoe, também roteirista). E é onde encontramos outro personagem essencial: ninguém mais, ninguém menos que Charles Darwin (!), que identifica no “papagaio” do Capitão um dodô, presumivelmente já extinto, e com isso vê a chance para a) ser reconhecido como cientista brilhante na Academia Britânica de Ciências; e, graças a isso, b) ter uma chance de aproximação com sua paixão secreta, a temível rainha Vitória, maior inimiga dos piratas.
São principalmente nas aparições de Darwin que aparecem as piadas para os papais e mamães, mais sutis. E não menos engraçadas. E o mordomo-macaco Sr. Bobo, uma das pistas da teoria da evolução ainda não elaborada, é um verdadeiro achado, com sua comunicação por cartazes ao estilo Bob Dylan.
Apesar do monte de referências culturais —que os papais e mamães mais letrados irão adorar— o texto de Gideon e a direção de Peter Lord não deixa as crianças de lado em momento algum. A chegada à Londres ao som de London Calling, clássico do punk criado pelo Clash, é um exemplo perfeito, unindo os dois públicos na constatação de um dos bucaneiros: “Londres tem cheiro de vovó!” 😀
Falando em Clash, a trilha sonora é destaque pelo bom gosto e, digamos, bem educativa: tem rocks como Alright do Supergrass, o pop esquisito dos Pogues com Fiesta e a engracadíssima I’m Not Crying do duo Flight of the Conchords.
Piratas Pirados! é divertido e representa bem o legado da Aardman. Mas não chega aos pés d’A Fuga das Galinhas (particularmente, não gosto de Wallace & Gromit). Não sei se vale o ingresso (caro, por ser em 3D) e se devo te convencer disso, mas se quiser uma desculpa, há sempre o argumento definitivo: MASSINHA! ANIMADA! STOP MOTION! [acontece que depois que este texto foi publicado, descobri que os piratas não eram moldados em massinha, mas esculpidos em plástico, madeira e cerâmica. Mal aí pelo erro :-(]
P.S.
Pra fazer justiça, a dublagem brasileira é competente e feliz, principalmente quando adapta as piadas ao nosso paladar. É um estupro do original? Sim, como qualquer dublagem e qualquer tradução. Mas não significa necessariamente que o resultado é ruim (ou bom). Por um lado, elimina a distração de tentar reconhecer o ator por traz da voz, gerando mais imersão. E confesso que adoro quando adicionam um sotaque regional (um dos piratas tem sotaque nordestino —mas não supera os havaianos gaúchos de Lilo & Stitch).
P.P.S.
Se o 3D não é um assombro, pelo menos não me deixou com dor de cabeça. Coisa rara!