Mudinhas de Espinafre são pílulas pop, comentários (nem sempre) curtos e sem profundidade sobre coisas bacanas que você deveria ver, ouvir, ler. Ou não.
Filmes
Contra o Tempo – Source Code
O segundo longa de Duncan Jones (filho de David Bowie pra quem não sabe, diretor do ótimo Lunar) prova que é possível um filme ser bom mesmo que o roteiro tenha mais furos que um queijo suíço.
É um suspense “whodunnit” travestido de ficção científica. Jake Gyllenhaal é um soldado tornado “voluntário” para um experimento chamado de código-fonte, uma tecnologia em que é possível reviver em looping os últimos 8 minutos registrados num cérebro morto. O cérebro em questão pertence a uma vítima de um atentado a bomba num trem. Há indícios de que esse foi apenas o prenúncio de uma ação terrorista ainda maior prestes a acontecer. O trabalho, então, se resume a tentar descobrir o autor antes que mais americanos voem pelos ares.
Se analisado sob a lógica cartesiana, o aspecto científico da trama não faz o menor sentido. O soldado (na pele do morto) consegue interagir com as pessoas e o ambiente, inclusive modificando acontecimentos e indo até cenários em que o finado não esteve. Só que a condução do filme é tão boa (incluindo um design Frankensteiniano de arrepiar e uma estrutura Corra Lola Corra bem realizada) que, inexplicavelmente, essa enorme cratera no bom senso não chega a incomodar a mente durante o filme. É como um truque de prestidigitação.
Já o pós-filme exige alguma elaboração para que tudo o que foi visto não derreta sob o peso da falta de nexo. A melhor saída que achei foi encará-lo como uma obra onírica, da melhor estirpe de David Lynch. Num universo de sonho, o sentido não é obrigatório: o que vale é a experiência. É uma justificativa mambembe? Sem dúvida. Mas foi a única que encontrei para explicar o paradoxo de ter gostado de uma obra cuja própria premissa já nasce defeituosa.
Missão Madrinha de Casamento – Bridesmaids
A comédia hit do ano passado é deliciosa. Se há algo de inovador (e de relativamente triste, se pensarmos que é um filme já da segunda década do século XXI), é o protagonismo das mulheres sem transformá-lo num filme de mulherzinha.
O roteiro é redondinho e as tiradas são bem engraçadas, mesmo que o tom geral seja meio agridoce.
Isso tudo, no entanto, é acessório. Missão Madrinha de Casamento se sustenta pura e simplesmente nos personagens e no elenco afiado. Como se fosse uma boa e longa sitcom.
Os coadjuvantes são qualquer coisa, com destaques para Melissa McCarthy, mais ou menos um Ricky Gervais de saias misturado com Chris Farley; Chris O'Dowd, mais conhecido como o personagem principal da série britânica The IT Crowd (e que está irreconhecível em Girls como um yuppie temporão); e Jon Hamm, o Don Draper de Mad Men numa versão ainda mais cafajeste e desprovida de glamour.
Só que destaque mesmo só tem um: Kristen Wigg. A quase quarentona egressa do Saturday Night Live (não confundir com a paródia do Rafinha Bastos) e que quase sempre faz o papel de parva (vide Adventureland) está deslumbrante, absolutamente carismática e nos faz querer vê-la em mais filmes interpretando gente de verdade.
HQ
Deus, Essa Gostosa
Talvez você conheça essa tirinha de mesmo nome do Rafael Campos Rocha (publicada aos domingos no caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo), talvez não.
Se não conhece, deveria! Considero Rafael Campos Rocha o novo Laerte. O que é muita coisa.
Dono de um traço refinado e de um humor sagaz, o cartunista tem em Deus, Essa Gostosa uma obra inteligente, iconoclasta, com alguma crítica social, polêmica, divertida e, por que não?, sexy. E certamente vai desagradar as almas mais conservadoras.
Deus, a entidade suprema criadora da vida, do universo e tudo mais é uma mulata tranquilona e bem humorada, fã dos pequenos e dos grandes prazeres cotidianos, como uma tarde num boteco, uma partida de futebol e sexo. Muito sexo. Costuma passar o tempo confraternizando com o “baixo clero”, as divindades menores: Jaci (uma deusa indígena), Anúbis e Hórus, Satã… De vez em quando, o próprio Deus dá as caras (aquele, o católico/evangélico de cabelos e barba brancos e com delírios de grandeza). Você pode conhecer as tiras clicando aqui —não é apropriado para o trabalho, nem para menores.

O livro, lançado esse ano pela Quadrinhos na Cia., estende o conceito. Não é uma coletânea das tiras, mas uma coleção de historietas inéditas. Uma semana na vida da Criadora passada na Terra (afinal, ela é onipresente).
A leitura é rápida —em meia hora você dá conta. Tem mais sexo. Explícito, inclusive. E menos deuses (só Satã dá as caras, um hippie paz e amor em crise existencial). Mostra Deus no dia a dia, tocando seu sex shop, vivendo com seu marido Carlos e criando um universo. Coisas assim.

Infelizmente, não é tão bom quanto as tiras. Nunca pensei que diria isso, mas o excesso de sexo corta o barato. Não é que eu tenha uma visão conservadora, pelo contrário. Acho inclusive que a desmistificação da relação entre Deus e sexo é um acerto. Afinal, transar é natural e divino.
É que Deus, Essa Gostosa brilha muito quando aborda aspectos mais mundanos e critica a raça humana com ironia fina. Não à toa, as melhores sequências do livro são justamente o bate-papo com Satã regado a chope e pastel de camarão, as interações de Deus com sua funcionária do sex shop e a impagável consulta com uma cartomante charlatã. Nas tiras, Rafael incorpora mais esse espírito e consegue ser mais conciso, vai direto ao ponto.
Mesmo que o livro não seja tão bom, vale uma olhada. Principalmente para acompanhar a evolução do talento desse ótimo cartunista.