rúcula X agrião: V de Vingança

A saudosa batalha entre rúcula X agrião ressuscita para trazer à tona o embate entre V de Vingança —a cultuada história em quadrinhos sobre um anarquista mascarado que luta contra um governo opressor de uma Inglaterra fascista num futuro distópico, arquitetando uma elaborada vendetta pessoal no caminho— e V de Vingança, sua adaptação cinematográfica com Hugo Weaving no papel principal.

V de Vingança
O destaque para Natalie Portman no cartaz (com V relegado ao 2º plano) já quer dizer alguma coisa, não?

a hq

Se a arte da escola inglesa de quadrinhos dos anos 80 parece datada —com sua narrativa suja, abarrotada de quadros por página e que causa certa confusão visual, uma sensação claustrofóbica advinda da miríade de elementos espremidos—, o mesmo não se pode dizer da história.

V de Vingança traz um Alan Moore afiado. Muito suspense, plot twists de tirar o fôlego e, principalmente, uma ótima caracterização geopolítica pós-apocalipse. Você consegue sentir essa Londres que (sobre)vive num estado totalitário pulsar e respirar de forma cautelosa, sob o peso da opressão.

O roteiro não é perfeito. Particularmente, o desmoronamento moral do Líder fascista me pareceu uma solução fácil, pra não dizer infantil. Mesmo assim, pequenas falhas como essa não são suficientes para tirar o brilho da engenhosidade de Moore e Lloyd, que constroem um cenário tão hermético que é capaz não só de justificar, como de convencer o leitor de que o terrorismo anarquista de codinome V é a única saída para a tirania. Um feito e tanto, se considerarmos que suas táticas e métodos são tão monstruosos quanto os do regime que combate.

o filme

A pior coisa que você pode fazer é ler os quadrinhos antes do filme. Ou, melhor dizendo, a pior coisa que você pode fazer é assistir ao filme.

Bastam 10 minutos para entender e dar razão à Alan Moore, que renega toda obra cinematográfica baseada em seus livros.

Alan Moore
Flagra: o instante em que Moore termina de ler o roteiro do filme.

(Inclusive, nos créditos, o filme é somente “baseado na obra visual de David Lloyd“. Alan Moore fez questão de não aparecer —e, por tabela, abrir mão de uma tonelada de grana)

Tudo o que é construído de forma meticulosa nos quadrinhos é simplificado, sanitizado e pasteurizado na tela, a ponto de ficar irreconhecível. Perde-se a sutileza e, em troca, somos agraciados com puro maniqueísmo.

Codinome V, a alma dessa vendetta, é o aspecto mais corrompido. Deixa de ser uma força ideológica para tornar-se um super-humano, no que é talvez o maior caso de falha de interpretação de texto que Hollywood já incorreu. Todo o propósito de V nos quadrinhos é dar poder ao ideal, eliminando qualquer traço de humanidade do protagonista. Já o filme toma exatamente o caminho contrário, acrescentando personalidade, dúvidas e dores de amor ao personagem, humanizando e adulterando V.

V for Vendetta
Pelo menos, V ganha um belo avental! #not

Fosse só (!?) isso, teríamos apenas mais um caso corriqueiro de Hollywoodização. Mas o problema vai além quando o filme não se sustenta por si, a despeito do fator adaptação.

Natalie Portman tem uma atuação sofrível. Caricata e careteira ao extremo, não transmite um pingo de emoção genuína. Parece estar atuando em peça de colégio. E pode-se dizer o mesmo de William Hurt no papel do alto-chanceler Adam Sutler. Hurt está num piloto automático de pastiche de Hitler, causando ainda mais contraste com o propósito da narrativa de Alan Moore.

V de Vingança
Acima: William Hurt em momento O Grande Ditador. Abaixo: Natalie vive seu dia Carolina Dieckmann.

Nesta entrevista publicada no Omelete, por exemplo, o autor fala justamente de como tentou fugir do clichê do nazista crápula (grifos meus):

“Você tem que amar os personagens. Isso foi algo que eu descobri quando estava escrevendo V de Vingança. Quando fui escrever os nazistas eu percebi que estava tratanto eles quase como caricaturas de nazistas. Todos eles, mais ou menos, tinham monóculos e os clichês de sempre. E eu pensei “Nazistas de verdade não são assim, nazistas de verdade são pessoas normais.” É de lá que eles vieram. Eles eram limpadores de rua e padeiros e açougueiros que apenas colocaram um uniforme quando lhes pediram isso. Então, eu tentei criar seres humanos críveis que tivessem escolhido o fascismo por alguma razão, e descobri que alguns deles ainda eram personagens desagradáveis, mas provavelmente para entender os personagens você tem que amá-los de alguma forma, olhá-los sem julgamento e sentir um pouco de pena deles.”

Até o regime fascista do filme falha em se mostrar opressivo. Pelo menos, é essa a impressão que fica quando se vê as famílias-margarina retratadas: parecem um bando de bobalhões de classe média alta. Não há medo, apenas normalidade.

A única imagem que presta não está no livro: é o vagalhão de Vs tomando de volta o poder político. E ainda assim, funciona apenas visualmente, já que corrobora a tese do parágrafo anterior, do fascismo-banana. Militares pró-regime fortemente armados que se entregam sem disparar um tiro? Por muito menos, e em situações bem mais adversas, vemos chacinas diariamente nas páginas do noticiário internacional.

V de Vingança

Talvez, o mais irônico disso tudo seja que a crítica nerd tenha adorado o filme em peso na época de seu lançamento (eu incluso, embora o espinafrando.com ainda não existisse). O adjetivo mais usado foi “corajoso”, por apresentar uma “metáfora inteligente do governo Bush”. Será que estávamos todos tão ansiosos por uma adaptação Vertigo para as telas que ficamos cegos para a ruindade do trabalho de James McTeigue? Será que os Wachowski, produtores e roteiristas de V de Vigança, ainda tinham tanto crédito acumulado pelo primeiro Matrix que nublaram nosso discernimento? Não tenho repostas. Mas é no mínimo curioso que o selo Vertigo, sinônimo de entretenimento adulto e de vanguarda nos quadrinhos, se torne símbolo de infantilização e de narrativas convencionais quando transposto para o cinema.

o veredicto

Uma luta injusta com um resultado acachapante para o time da casa. Foram 3 parágrafos de argumentos consistentes a favor da HQ e uma montanha de palavras contra o filme para desopilar o fígado.

V de Vingança
O codinome V do filme, após o confronto com sua contraparte dos quadrinhos.

 

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