A saudosa batalha entre rúcula X agrião ressuscita para trazer à tona o embate entre V de Vingança —a cultuada história em quadrinhos sobre um anarquista mascarado que luta só contra um governo opressor de uma Inglaterra fascista num futuro distópico, arquitetando uma elaborada vendetta pessoal no caminho— e V de Vingança, sua adaptação cinematográfica com Hugo Weaving no papel principal.

a hq
Se a arte da escola inglesa de quadrinhos dos anos 80 parece datada —com sua narrativa suja, abarrotada de quadros por página e que causa certa confusão visual, uma sensação claustrofóbica advinda da miríade de elementos espremidos—, o mesmo não se pode dizer da história.
V de Vingança traz um Alan Moore afiado. Muito suspense, plot twists de tirar o fôlego e, principalmente, uma ótima caracterização geopolítica pós-apocalipse. Você consegue sentir essa Londres que (sobre)vive num estado totalitário pulsar e respirar de forma cautelosa, sob o peso da opressão.
O roteiro não é perfeito. Particularmente, o desmoronamento moral do Líder fascista me pareceu uma solução fácil, pra não dizer infantil. Mesmo assim, pequenas falhas como essa não são suficientes para tirar o brilho da engenhosidade de Moore e Lloyd, que constroem um cenário tão hermético que é capaz não só de justificar, como de convencer o leitor de que o terrorismo anarquista de codinome V é a única saída para a tirania. Um feito e tanto, se considerarmos que suas táticas e métodos são tão monstruosos quanto os do regime que combate.
o filme
A pior coisa que você pode fazer é ler os quadrinhos antes do filme. Ou, melhor dizendo, a pior coisa que você pode fazer é assistir ao filme.
Bastam 10 minutos para entender e dar razão à Alan Moore, que renega toda obra cinematográfica baseada em seus livros.

(Inclusive, nos créditos, o filme é somente “baseado na obra visual de David Lloyd“. Alan Moore fez questão de não aparecer —e, por tabela, abrir mão de uma tonelada de grana)
Tudo o que é construído de forma meticulosa nos quadrinhos é simplificado, sanitizado e pasteurizado na tela, a ponto de ficar irreconhecível. Perde-se a sutileza e, em troca, somos agraciados com puro maniqueísmo.
Codinome V, a alma dessa vendetta, é o aspecto mais corrompido. Deixa de ser uma força ideológica para tornar-se um super-humano, no que é talvez o maior caso de falha de interpretação de texto que Hollywood já incorreu. Todo o propósito de V nos quadrinhos é dar poder ao ideal, eliminando qualquer traço de humanidade do protagonista. Já o filme toma exatamente o caminho contrário, acrescentando personalidade, dúvidas e dores de amor ao personagem, humanizando e adulterando V.

Fosse só (!?) isso, teríamos apenas mais um caso corriqueiro de Hollywoodização. Mas o problema vai além quando o filme não se sustenta por si, a despeito do fator adaptação.
Natalie Portman tem uma atuação sofrível. Caricata e careteira ao extremo, não transmite um pingo de emoção genuína. Parece estar atuando em peça de colégio. E pode-se dizer o mesmo de William Hurt no papel do alto-chanceler Adam Sutler. Hurt está num piloto automático de pastiche de Hitler, causando ainda mais contraste com o propósito da narrativa de Alan Moore.

Nesta entrevista publicada no Omelete, por exemplo, o autor fala justamente de como tentou fugir do clichê do nazista crápula (grifos meus):
“Você tem que amar os personagens. Isso foi algo que eu descobri quando estava escrevendo V de Vingança. Quando fui escrever os nazistas eu percebi que estava tratanto eles quase como caricaturas de nazistas. Todos eles, mais ou menos, tinham monóculos e os clichês de sempre. E eu pensei “Nazistas de verdade não são assim, nazistas de verdade são pessoas normais.” É de lá que eles vieram. Eles eram limpadores de rua e padeiros e açougueiros que apenas colocaram um uniforme quando lhes pediram isso. Então, eu tentei criar seres humanos críveis que tivessem escolhido o fascismo por alguma razão, e descobri que alguns deles ainda eram personagens desagradáveis, mas provavelmente para entender os personagens você tem que amá-los de alguma forma, olhá-los sem julgamento e sentir um pouco de pena deles.”
Até o regime fascista do filme falha em se mostrar opressivo. Pelo menos, é essa a impressão que fica quando se vê as famílias-margarina retratadas: parecem um bando de bobalhões de classe média alta. Não há medo, apenas normalidade.
A única imagem que presta não está no livro: é o vagalhão de Vs tomando de volta o poder político. E ainda assim, funciona apenas visualmente, já que corrobora a tese do parágrafo anterior, do fascismo-banana. Militares pró-regime fortemente armados que se entregam sem disparar um tiro? Por muito menos, e em situações bem mais adversas, vemos chacinas diariamente nas páginas do noticiário internacional.
Talvez, o mais irônico disso tudo seja que a crítica nerd tenha adorado o filme em peso na época de seu lançamento (eu incluso, embora o espinafrando.com ainda não existisse). O adjetivo mais usado foi “corajoso”, por apresentar uma “metáfora inteligente do governo Bush”. Será que estávamos todos tão ansiosos por uma adaptação Vertigo para as telas que ficamos cegos para a ruindade do trabalho de James McTeigue? Será que os Wachowski, produtores e roteiristas de V de Vigança, ainda tinham tanto crédito acumulado pelo primeiro Matrix que nublaram nosso discernimento? Não tenho repostas. Mas é no mínimo curioso que o selo Vertigo, sinônimo de entretenimento adulto e de vanguarda nos quadrinhos, se torne símbolo de infantilização e de narrativas convencionais quando transposto para o cinema.
o veredicto
Uma luta injusta com um resultado acachapante para o time da casa. Foram 3 parágrafos de argumentos consistentes a favor da HQ e uma montanha de palavras contra o filme para desopilar o fígado.

Lembrando de Marrrquinho, gostei do novo lay out!
Haha! Ainda não é o definitivo, mas tava precisando de uma arejada…