Elucubrações e sandices:
Ou como um homem de lata foi alçado ao estrelato no papel e na película
Por quase 40 anos, o Homem de Ferro pertenceu ao segundo escalão do panteão da editora, mesmo sendo membro fundador dos Vingadores.
E não por falta de potencial, mas por causa de um simples círculo vicioso: nesse período, os personagens mais populares eram o Homem-Aranha e os X-Men, atraindo os melhores roteiristas e desenhistas por períodos mais longevos, resultando em boas histórias que se refletiam nas vendas.
Mesmo boas passagens, como a de David Micheline e Bob Layton no final dos anos 70 e por boa parte dos 80 (com a célebre história Demônio na Garrafa, que introduzia o tema do alcoolismo na vida de Tony Stark), não eram suficientes para quebrar a sina. Foi só em meados da década de 00 que esse quadro se alterou.
Olhando em retrospecto, diria que uma conjunção de fatores catapultou Tony Stark à posição de destaque no Universo Marvel (mesmo que sua revista solo ainda esteja longe de ser campeã de vendas), e que muitos (senão todos) tiveram a ver com o cinema.
A renascença do gênero de super-heróis no cinema
Tudo começou em 1998, com a adaptação de Blade pelo estúdio New Line. Um personagem do 3º ou 4º escalão da Marvel que obteve êxito relativo de público e crítica, abrindo caminho para a 20th Century Fox apostar em Bryan Singer e seus X-Men em 2000.
O cinema de super-heróis se provou um filão lucrativo com os mutantes, provocando uma corrida dos estúdios pela propriedade intelectual da Marvel (já que a DC pertence ao grupo Time-Warner).
O resultado imediato foi o sucesso de bilheteria ainda maior do Homem-Aranha de Sam Raimi (Columbia/Sony, 2002) e o incrível (haha) Hulk de Ang Lee pela Universal (2003).
Na sequência, as fracas adaptações de Demolidor (2003), Elektra (2005) e Quarteto Fantástico (2005) pela Fox, além do Justiceiro (2004) pela Lions Gate: filmes ruins, mas que renderam uma boa grana na bilheteria.
[quer um panorama mais abrangente sobre o gênero no cinema? Leia aqui]
É provável que a essa altura tenha passado pela cabeça dos executivos da Casa das Ideias que, apesar de estarem ganhando muitos dólares com os acordos de licenciamento (não só dos estúdios, mas também de todo o merchandising advindo do renovado gosto do mercado por suas propriedades), provavelmente estavam deixando de ganhar muito mais se tivessem todo o controle de seus personagens.
Com o Motoqueiro Fantasma já vendido para a Columbia/Sony (estreando em 2007 com Nicolas Cage), só restara para a Marvel a trupe dos Vingadores. Se hoje parece muito, lembre-se que na época o público só tinha olhos para os X-Men e o Homem-Aranha. Homem de Ferro, Capitão América, Thor e cia. iam mal de vendas e de histórias.
Por uns dólares a mais: arrumando a Casa (das Ideias)
De novo, não passa de especulação deste vegetal que vos escreve, mas, de forma consciente ou não, a Marvel deu um tiro certeiro ao designar o então promissor Brian Michael Bendis para revigorar a revista dos Vingadores.
Bendis fazia bonito em HQs independentes como Jinx, Torso e Powers e fora contratado pela grande M em 2000 para dar vida à linha Ultimate, uma nova abordagem aos tradicionais heróis Marvel sem o peso da cronologia. O sucesso de sua nova versão do Homem-Aranha o levou ao Universo Marvel regular em 2001, com o Demolidor —que viveu uma de suas melhores fases sob a batuta do careca. Ainda em 2001, o prolífico roteirista ajudou na criação do selo MAX, que trazia histórias mais “adultas” e livres da cronologia principal. Sua série Alias foi novamente aclamada.
Chegamos novamente ao ponto chave que coincide com o fim da primeira leva de filmes de heróis, quando Bendis começou sua fase à frente dos Vingadores com a saga A Queda —um exercício de desconstrução da equipe, que causou barulho com a morte “definitiva” de personagens clássicos (entre eles o Visão e o Gavião Arqueiro, que obviamente voltaram dos mortos algum tempo depois) e plantou as bases para a revigoração da linha editorial entre 2004 e 2005, conduzindo o tradicional time de heróis a uma posição que não ocupava há muito tempo (e que sua versão Ultimate por Mark Millar e Bryan Hitch —Os Supremos— conquistara de primeira): a de mais populares da editora.
À reboque, a Marvel trouxe novos autores para revitalizar o trio principal.
Ed Brubaker ficou com o Capitão América, transformando o escoteiro bandeiroso num personagem rico, cheio de nuances e conflitos, em histórias de ação e espionagem.
O poderoso Thor ficou a cargo de J. M. Straczinski, que reintroduziu o panteão nórdico em Midgard (a nossa Terra) após o Ragnarok (espécie de apocalipse para os deuses vikings) no local mais inusitado (uma cidadezinha do Novo México) e da forma mais inesperada (bem, isso você vai ter que descobrir lendo as primeiras edições, que valem à pena).
[curiosidade: Straczinski, que além de roteirista de quadrinhos também ataca na TV e cinema, criou histórias para o antigo desenho animado dos Caça-fantasmas, com destaque para o episódio que faz ligações com o 1º filme e explica tanto os uniformes coloridos do desenho quanto a amizade com o Geleia]
E Warren Ellis assumiu as 6 primeiras edições da nova série do Homem de Ferro (entre 2005 e 2006), o arco conhecido como Extremis, em que estabelece um recomeço para o herói de armadura. Foi o início da mudança de status quo do latinha no Universo Marvel.
Homem de Ferro: Extremis — um reboot que rendeu
A história é um thriller sobre um vírus tecno-orgânico chamado Extremis, desenvolvido por Maya Hansen e Aldritch Killian num laboratório financiado pelas Forças Armadas dos EUA. O experimento é capaz de reescrever o código genético de uma pessoa e transformá-la num super-humano.
Logo no início, é estabelecido o cenário: num depósito abandonado, um grupo injeta algo voluntariamente num homem chamado Mallen, que sofre dores horríveis e vomita as tripas; Tony Stark está trancado há dias em sua oficina e passa por uma crise pessoal, quando sua secretária o desperta para um compromisso marcado há nove semanas; Killian aparece escrevendo uma carta em que confessa ter vazado uma amostra do Extremis, onde diz estar ciente de que liberou algo terrível, mesmo sabendo que isso “precisava acontecer”. Em seguida, comete suicídio.
O tal compromisso de Tony era uma entrevista para um documentário antibelecista. Um flashback reconstitui o momento em que ele é alvejado por um estilhaço de um explosivo fabricado pelas Indústrias Stark, atualizando a ação para os conflitos com o Taleban no Afeganistão. Tony é massacrado pelo entrevistador, que o confronta com o passado armamentista de sua indústria e suas consequências. Vemos um homem corroído pela culpa e pela responsabilidade, tentando dar a volta por cima.
Enquanto isso, Maya Hansen relembra o encontro com Tony Stark num congresso e decide contatar o velho amigo após os acontecimentos no laboratório. Pra um milionário, é fácil: questão de pegar o jatinho, participar de uma reunião virtual com a diretoria da empresa sobre o lançamento de um smartphone durante o voo, encontrar a amiga no laboratório e sugerir um almoço com o mentor bicho-grilo em outro estado.
[e é interessante notar como o ápice da tecnologia embarcada em um gadget fictício de 2005 parece completamente obsoleto perto de um iPhone ou Nexus. Vivemos no futuro e muitas vezes não nos damos conta disso]
Não demora para que Mallen ressurja aprimorado pelo Extremis. E para seu plano vir à tona: um ataque terrorista sangrento contra o escritório do FBI em Houston, com direito a murros que atravessam cabeças e a cuspidas de fogo.
Assim que Maya e Stark ficam sabendo do ocorrido, é hora do Homem de Ferro entrar em ação para impedir que o Mallen turbinado cometa mais atrocidades e consiga chegar à Casa Branca.
A história segue numa aula de narrativa, uma combinação perfeita entre o texto (e subtexto) afiado de Ellis e a arte detalhista e fotorrealista de Adi Granov. É tensa e reflexiva, espetacular e intimista, crítica e escapista. No fim, temos um Tony Stark 2.0 e um novo Homem de Ferro, aprimorado pelo Extremis: mais rápido, mais forte, mais poderoso e mais inteligente, pronto para se tornar o “piloto de testes para o futuro” e assumir papel central no Universo Marvel, começando pela reconstrução dos Vingadores.
De volta para o futuro: uma aposta arriscada em Hollywood e a Lei de Lavoisier
Um par de anos mais tarde, a Marvel Studios deixava de ser apenas licenciadora para se aventurar na produção integral de seu primeiro filme. Homem de Ferro seria lançado em 2008, sob muita desconfiança (“personagem de segundo escalão? Sem vilões memoráveis? O problemático Robert Downey Jr. no papel principal de um blockbuster? Com o diretor de Zathura e Um Duende em Nova York no comando? Pfff!”), o que serviu apenas para exacerbar o êxito obtido nas bilheterias, nas críticas e junto à comunidade de fãs.
Não acredito que seja coincidência o fato de muitos dos conceitos apresentados nas 6 edições do arco Extremis terem ganhado vida nos 3 filmes do herói.
A origem atualizada do Homem de Ferro, a atitude sui generis de Tony Stark e o resgate de seu passado belicista há muito tempo deixado de lado nas revistas estão no 1º filme.
O próprio vírus Extremis aparece no fecho da trilogia, junto com Hansen, Killian e Mallen, personagens que foram reaproveitados, ainda que totalmente reformulados.
Sem contar o DNA do design de Granov, espalhado por toda a saga no cinema e mais especificamente no 2º episódio, com a armadura que traz o reator triangular. O artista, afinal, participou como consultor e depois como ilustrador conceitual na produção dos filmes.
Se todo esse movimento no cinema e nos quadrinhos foi parte de um plano estratégico de longo prazo da Marvel para dominação mundial com o núcleo dos Vingadores, ou apenas o aproveitamento das oportunidades que sobraram após licenciar quase a totalidade de sua propriedade intelectual para terceiros, apenas Kevin Feige (o homem forte da Marvel Studios) e Joe Quesada (seu equivalente na editora) podem responder.
Mas o mais interessante para quem acompanha as histórias no papel e na tela grande é ver como ambas as mídias conseguem viver ao mesmo tempo em simbiose e em paralelo, uma retroalimentando a outra numa trajetória em espiral.
Homem de Ferro é o melhor exemplo dessa relação: uma HQ que sofreu uma correção de rumos, provavelmente levada (ou forçada) pelos acontecimentos em Hollywood, serviu de base para a incursão da editora em terreno cinematográfico, e que, por sua vez, influenciou a criação de novas histórias no papel que serviram de fonte de inspiração para o 3º filme –para aproveitar o uso de Obadiah Stane no filme de 2008, personagem sepultado nos quadrinhos desde a metade da década de 80, Matt Fraction e Salvador Larroca resgataram do limbo seu filho, Ezekiel Stane, numa trama de 2009 chamada Os 5 Pesadelos, sobre homens-bomba que utilizavam tecnologia Stark para ataques terroristas. No filme de 2013, esse conceito foi reciclado junto com o arco Extremis, com Aldritch Killian assumindo o papel que fora de Ezekiel e o vírus servindo de gatilho para as auto-explosões.
Lições e reflexões
Com o fim da Fase 1 das produções próprias da Marvel Studios —composta por Homem de Ferro 1 e 2, O (não tão) Incrível Hulk, Thor, Capitão América: O Primeiro Vingador e Os Vingadores— e o início auspicioso da Fase 2 (além de Homem de Ferro 3, teremos as partes 2 de Thor e Capitão América e o inédito Guardiões da Galáxia, culminando em Vingadores 2), há de se reconhecer que houve mais acertos que erros na gestão interna de seus personagens e marcas.
Enquanto o Hulk não conseguiu se firmar em sua aventura solo, o mesmo não se pode dizer de sua participação no filme da equipe. Thor teve um primeiro filme problemático, ainda que sob a batuta de Kenneth Branagh. O Capitão América conseguiu extrair leite de pedra e Homem de Ferro é sucesso escancarado.
A escalação de Joss Whedon para tocar os Vingadores inaugurou uma tendência esperta de trazer diretores criativos ainda não consolidados em Hollywood. Tendência que parece se confirmar com Shane Black no Homem de Ferro 3 e Alan Taylor em Thor: Reino Sombrio. Mais do que criativos, esses nomes têm uma ligação peculiar com seus respectivos filmes: Whedon é o nerd por excelência, apaixonado por quadrinhos e especialista em histórias de equipe (como provou nos roteiros de uma das melhores fases dos X-Men nas HQs, do seriado Firefly e do espetacular Toy Story); Black não só deu a luz à icônica série Máquina Mortífera, como também pode ser considerado especialista na revitalização da carreira de Robert Downey Jr., com seu Beijos e Tiros; e Taylor desembarca numa aventura mitológica saído diretamente da direção de episódios de Game of Thrones (sem contar os outros grandes seriados da TV americana que dirigiu: Lost, Sopranos, Mad Men, Oz, The West Wing, Sex and the City, Boardwalk Empire, Rome, Six Feet Under e Deadwood).
Se até 2015 a Marvel Studios parece estar nos trilhos, a situação a partir daí deve trazer uma série de desafios.
Já anunciados para a Fase 3, os filmes do Homem-Formiga (por Edgar Wright) e do Dr. Estranho vão botar lenha na discussão sobre o potencial de personagens obscuros numa mídia de massa. Discussão que será retomada ainda em 2014, com a estreia da incógnita Guardiões da Galáxia.
E se as opções de novidades viáveis começarem a se esgotar, algumas franquias ainda podem retornar para suas mãos: o Demolidor, por exemplo, já deixou a Fox, seguindo o mesmo caminho do Hulk na Fase 1.
A batalha mais dura certamente será travada no campo das finanças: a luta para bancar as estrelas que ajudou a criar, como já acontece na negociação salarial com Downey Jr. Uma derrota aqui certamente será acompanhada de um revés criativo, o famigerado reboot.
Se a Marvel Studios continuará com sua taxa de sucesso, só o tempo dirá. Mas sua trajetória já é, no mínimo, espantosa. Continuemos acompanhando, pois.
Eu não acho que foi coincidência a Marvel fazer tudo isso. Até os Skrulls, na versão utilmate, tiveram seus papéis trocados pelos Chitauri que depois ganharam um belo destaque no filme dos Vingadores.
BTW
Os heróis “menores” e que voltaram agora para a Marvel, poderiam ganhar seu espaço nos seriados. A série da SHIELD que está pra sair, mostrará alguns (dizem até que Luke Cage será um deles) mas seria bem legal uma série dos Heróis de Aluguel dentro do universo da Marvel e uma, no mesmo universo, sobre o Demolidor!
A série do Advogado dos heróis (e dos fracos e oprimidos) que é cego e arrebenta com os marginais a noite, poderia ser incrível.
O problema de introduzir heróis de menor apelo em seriados na TV é que dificilmente conseguirão fazer o salto pro cinema. Pegando o histórico cinematográfico, o protagonista sempre foi um ator de certo renome na indústria, mesmo que não esteja no auge da carreira (e nesse sentido, Chris Hemsworth foi a exceção que confirma a regra). E, por mais que hoje as séries da TV paga estejam rivalizando e até superando o cinema em termos de qualidade, ainda são poucos os atores de cinema que vencem o preconceito e transitam pela TV. Meu ponto é: dificilmente um ator de Hollywood vai se sujeitar a pontas num seriado, como laboratório-teste para um filme.
Acho que com uma boa grana – e um bom contrato – isso poderia acontecer. Ainda mais se o papo do Downey Jr. que até ele pode aparecer na série da SHIELD não for mentira. Isso facilitaria na aceitação de um figurão.
Mas eles poderiam seguir a linha dos Guardiões, se o filme der certo, onde os papéis principais ficarão com “novatos”.