It's not a bird, it's not a plane… and it's not Superman.
A frase que abre esse post não é minha, infelizmente. Foi cunhada por Andy Diggle, um dos meus quadrinistas favoritos, logo após assistir O Homem de Aço. É de uma concisão brilhante e exprime de forma plena o que senti ao longo de todo o filme, que estreia nos cinemas brasileiros dia 12 de julho.
A julgar pelo que vi, não seria má ideia se o diretor Zack Snyder e o roteirista David S. Goyer começassem a pensar seriamente em pendurar o megafone e a caneta, respectivamente. Depois de um início promissor, parece que ambos conseguem piorar a cada filme novo.
O Homem de Aço tem pelo menos 2 problemas, de proporções mastodônticas: 1) não existe uma história, apenas um conjunto de cenas bonitas que não fazem sentido no conjunto, e 2) falha completamente em compreender o que é o Superman e o que ele representa.
Ainda assim, existem 3 acertos n'O Homem de Aço, a saber:
O início em Krypton
Pela primeira vez na história do Superman no cinema, Krypton é representada como algo bastante alienígena, o que, por tabela, torna Kal-El bastante alienígena, um ser deslocado no planeta Terra.
O início d'O Homem de Aço é pura ficção científica. Apesar dos kryptonianos serem humanóides, há um distanciamento de todo o resto da ambientação terrestre. A fauna apresenta seres monstruosos, a tecnologia está anos-luz à nossa frente e a sociedade organizada em castas biológicas evoca tanto o universo orwelliano de 1984 quanto a safra e colheita de humanos de Matrix. Esqueça, portanto, os cristais mambembes de Richard Donner e Bryan Singer.
E se conceitualmente essa introdução é, além de diferente, bastante inteligente, na prática a condução do enredo também não fica devendo. Há momentos de pura adrenalina e emoção em estado bruto (a cena em que Jor-El e Lara dão adeus ao pequeno Kal é de fazer brotar lágrimas). Aliás, são momentos que devem ser desfrutados de forma plena. Principalmente porque serão sua única chance de se emocionar ao longo de todo o filme.
O elenco
A escalação do elenco principal é um grande trunfo, ainda que mal utilizado.
A atuação de Russell Crowe no papel de Jor-El em Krypton não fica nada a dever ao Marlon Brando dos filmes de Donner. De fato, não pode ser considerado exagero se algum cinespectador mais afoito ousar dizer que Crowe chega a superar Brando nesse trecho específico. É pena que a coisa desande depois, mesmo que mais por culpa do roteiro do que do ator.
Henry Cavill não chega a comprometer até vestir o uniforme. E, quando compromete, parece ser mais por causa da (falta de) direção do que pela capacidade de atuação. Plasticamente, dá um belo Superman: uma figura imponente.
Amy Adams tem o mérito de ser a primeira Lois Lane verdadeiramente adorável no cinema.
O casal Kent traz o bem-vindo retorno de Kevin Costner como Pa' Jonathan (que faz muito bem um papel muito errado) e uma irreconhecível Diane Lane como Martha.
E nunca dá pra falar mal da atuação de Laurence Fishburne, mesmo que seu Perry White seja um personagem completamente desvirtuado (não é por causa da cor da pele do ator, e sim porque Goyer e Snyder transformaram o editor famoso por publicar a verdade acima de tudo num borra-botas).
E o último destaque também nos leva ao 3º ponto positivo de O Homem de Aço: Michael Shannon.
O General Zod
O Zod de Michael Shannon é o único elemento em todo o filme que não tem um mas ou porém. Um dos melhores e mais subestimados atores de sua geração, Shannon faz um vilão como deve ser: poderoso, assustador, inflexível, resoluto e implacável.
E na verdade, eu menti. Existe um mas: o vilão ser a melhor coisa de um filme do Superman é sintomático e diz muito sobre o tipo de erro que Snyder e Goyer cometeram.
***
A Não-História
Como cinema, este é o pecado capital. O Homem de Aço não funciona como filme porque simplesmente parece não ter uma história que valha a pena ser contada.
Há uma série de cenas, todas espetacularmente bonitas, e algumas muito boas até, mas que não fazem sentido encadeadas.
O fiapo de enredo funciona mais ou menos assim: Krypton explode porque os kryptonianos exauriram os recursos naturais do planeta e decidiram cavoucar o seu núcleo. Kal-El é enviado à Terra e Zod e seus comandados são exilados na Zona Fantasma por tentarem um golpe de estado. Zod e seus comandados escapam da Zona Fantasma e vão à Terra para recriar Krypton e se vingar do filho de Jor-El, porque este não quis apoiar o golpe e roubou uma espécie de Matrix capaz de criar novos kryptonianos.
Entre o ponto A, em Krypton —que dura uns 20 minutos— e o ponto B, quando Kal-El enfrenta Zod e seus comandados na Terra —que dura cerca de 1 hora de pancadaria e quebradeira non-stop—, há um conjunto de cenas que supostamente deveriam mostrar o crescimento do jovem Kal-El (adotado pelo casal Jonathan e Martha Kent do Kansas) e os eventos que moldam o caráter de Clark Kent no Superman.
Supostamente, porque não é a o que acontece de fato. Clark/Kal-El parece estar sempre perdido e desconectado da realidade. A postura de seus 2 pais também não ajuda, pois tomam posições antagônicas na sua criação. O resultado é um Superman egoísta e egocêntrico, incapaz de perceber o que acontece à sua volta, tomando decisões questionáveis e sem pesar as consequências.
Há zero desenvolvimento emocional do personagem, que ainda por cima tem poucas falas. No final, Kal-El não consegue se conectar nem à audiência.
E se plasticamente quase tudo é muito bem resolvido, o que seria um quarto ponto positivo, também é vazio e oco. A sensação que fica é a de um grande prólogo descartável para uma destruição sem sentido.
Pra piorar, o roteiro se perde em detalhes estapafúrdios, que fazem o vírus de computador de Independence Day parecer um erro inocente. A seguir, relaciono alguns deles, que podem ser considerados SPOILERS medianos. Se você ainda não assistiu ao filme e não quiser detalhes revelados, é melhor não expandir o texto:
- A outra nave kryptoniana na Terra.
[spoiler show=”Abrir o SPOILER” hide=”Ocultar o SPOILER”]Acontece que o foguete que trouxe Kal-El ao nosso planeta não era o único. Uma outra nave foi enviada antes e, se entendi bem, há muito tempo atrás, carregada de embriões kryptonianos, num antigo projeto de colonização. O que levanta uma série de questões: como o exército humano só foi encontrar a nave enterrada no Ártico junto com Kal-El? Esse tipo de coincidência é plausível? Por que não se menciona mais a descoberta do exército após Kal-El entrar na nave pela 1ª vez, como se toda a equipe militar e de cientistas simplesmente tivesse esquecido da descoberta? O que aconteceu com a equipe que pilotava a nave? Por que essa suposta equipe de kryptonianos não ficou superpoderosa e tentou conquistar a Terra, ou se transformou em super-heróis décadas (ou séculos) antes? Se não havia equipe, por que enviar uma nave não-tripulada daquele tamanho, repleta de embriões? Não bastaria uma simples sonda pra provar que a Terra é habitável? Por que o sentinela eletrônico ataca Kal-El mesmo depois dele usar a “chave” para ativar a nave? Se o holograma inteligente de Jor-El pode se materializar em qualquer lugar da nave, por que fica brincando de esconde-esconde ao invés de se apresentar de uma vez para Kal-El?[/spoiler]
- A Lois no lugar errado na hora certa.
[spoiler show=”Abrir o SPOILER” hide=”Ocultar o SPOILER”]Lois sempre foi um imã para encrenca no cinema. A diferença dos outros filmes para este é que antes ela tinha um motivo: normalmente, ela corria atrás de problema com o pretexto de conseguir reportagens para o Planeta Diário. Aqui, a intrépida Srta. Lane é colocada em perigo em dois momentos-chave sem nenhuma necessidade aparente, além de servir como “lady in distress” para que o Superman faça o serviço de salvá-la. No primeiro, Zod dá um ultimato para que a Terra entregue Kal-El (agora já vestido de Superman). Quando chega a hora do exército entregar seu “prisioneiro” (ainda que voluntário), os kryptonianos simplesmente mudam de ideia e exigem que Lois Lane vá junto. Qual o motivo? Nenhum. Até então, Zod e seus comandados não tiveram nenhum contato com a repórter, a não ser que tenham visto um programa de TV que falava que ela sabia onde Kal-El estava escondido. Após abduzi-la, a turma de Krypton também não tinha o que fazer com a prisioneira. No final da cena, Lois estava lá apenas para ativar o “pen-drive assombrado por Jor El”, que aproveita para ensinar à repórter o plano para derrotar Zod. O segundo momento é ainda mais patético e fora de propósito. Lois sabe como ativar um dispositivo para dar fim ao plano de Zod. Portanto, nada mais lógico que enviar a própria num avião militar direto para o ponto central do confronto, certo? Errado! Não passa pela cabeça do Superman, do general, do cientista-chefe do exército e da própria Lois que ela poderia simplesmente passar a informação aos militares e esperar o resultado num local seguro? Ainda mais quando o procedimento é mais simples que enfiar um pen-drive numa entrada USB. E, só pra constar, nem isso ela consegue fazer. É o próprio cientista-chefe quem descobre o que fazer, depois de analisar longamente o dispositivo: era só dar uma viradinha pra encaixar. Brilhante![/spoiler]
- A clarividência científica.
[spoiler show=”Abrir o SPOILER” hide=”Ocultar o SPOILER”]O negócio é o seguinte: faziam horas, se tanto, que a humanidade descobriu que não estava sozinha no universo. Além dos alienígenas propriamente ditos, fomos recém-apresentados à tecnologia além da imaginação. Mesmo assim, basta um olhar de relance para uma máquina monstruosa e tanto o cientista-chefe quanto o general do exército dos Estados Unidos instantaneamente deduzem que Zod está “terraformando” o nosso planeta, substituindo a atmosfera e a gravidade terrestre pela kryptoniana. Gênios![/spoiler]
- O genocídio para deter o genocídio.
[spoiler show=”Abrir o SPOILER” hide=”Ocultar o SPOILER”]Em dado momento, Superman destrói a tal nave kryptoniana do primeiro tópico, mesmo com Zod implorando pela única chance de proteger sua raça da extinção. Se entendi bem, essa nave estava cheia de embriões. Não é o mesmo que discutir o aborto, até porque a reprodução dos caras era assexuada, mas me parece que o campeão da verdade e da justiça chacinou uma população inteira nesse lance, sem um pingo de remorso. Ops![/spoiler]
- A completa falta de noção do Superman.
[spoiler show=”Abrir o SPOILER” hide=”Ocultar o SPOILER”]Cuidados com o bem-estar da população passam longe do modus operandi deste herói, acabando com qualquer resquício de empatia e simpatia que nós cinespectadores poderíamos ter. Se Zod e asseclas vão assediar Martha Kent, o que o Superman faz? Que tal voar desembestado, agarrar apenas Zod e arrastá-lo pelo meio de Smallville, atravessando inclusive um posto de combustível apinhado de gente, enquanto deixa sua mãe adotiva fazendo sala para os outros kryptonianos que a ameaçavam? Parece supimpa, mas a coisa piora. A tal máquina monstruosa de terraformação, na verdade são duas: uma no meio de Metrópolis, apinhada de civis inocentes, e outra no Oceano Índico. O Super decide atacar a que está num lugar deserto, provavelmente para proteger as plantas e os peixes, e manda o exército americano cuidar da que está em Metrópolis (que além de estar destruindo a cidade e seus habitantes, ainda é protegida pelo muito mais poderoso exército inimigo). Se isso não faz sentido, espere até descobrir que, destruindo qualquer uma das pontas, a outra para automaticamente. Depois dessa, nem dá pra esperar que o Super se preocupe em ajudar feridos e soterrados após a vitória: tem mais é que ir beijar a Lois mesmo. Aliás, se não errei nas contas, depois que Kal-El veste o uniforme, ele salva exatamente 2 pessoas durante o confronto: um piloto que cai praticamente em cima dele, e a Lois, pra garantir a sequência do filme.[/spoiler]
Esses foram os mais marcantes, mas nem de longe são os únicos. Felizmente, a maioria são detalhes que mais incomodam do que agridem a inteligência, como o uso inadequado da trilha sonora de Hans Zimmer (distante do tema épico de John Williams, é baseada em percussão e parece querer criar excitação até onde não é preciso, como na imagem contemplativa do espaço sideral) ou o design do uniforme (a cueca vermelha tem uma função: quebrar o azul do conjunto. Sem ela, o visual parece um pijama infantil, um erro cometido pela própria DC e Jim Lee na reformulação dos quadrinhos). Então, não vale a pena enumerá-los aqui.
***
O que é o Superman e o que ele representa
Muito mais do que esperança (uma metáfora utilizada pelo próprio Super para explicar o significado do S em seu peito), o Superman como ícone da cultura pop representa o potencial para o bem que existe em todo ser humano.
Sua essência é a compaixão, e sua função é inspirar e despertar o melhor dentro de cada um de nós. E isso não tem a ver com ter sangue de barata ou mesmo ser escoteiro, boa-praça, politicamente correto ou inocente, que fique claro. Tampouco tem a ver com a discussão sobre o Superman ser um herói que nunca deve apelar à ultima consequência. Ser o Superman é distinguir o certo do errado e fazer o primeiro. Sempre, e simples assim.
O Superman é uma bússola moral. Não à toa, pode ser utilizado como metáfora cristã, coisa que Snyder, Goyer e o produtor Christopher Nolan tentam enfiar goela abaixo com imagens e falas pouco sutis, mas que não convencem devido às ações do protagonista. Estas falam mais alto e contra o ideal representado por Cristo. E não importa se você é católico, muçulmano, budista, ateu ou seguidor de qualquer outra religião: qualquer um é capaz de reconhecer a nobreza por trás da máxima “ama o próximo como a ti mesmo” e do autossacrifício em prol do bem de todos.
Mais do que se entregar ao inimigo para evitar o holocausto, esperamos que o Superman proteja e se preocupe com os fracos e oprimidos, coisa que não acontece n'O Homen de Aço.
Se o Homem-Aranha nos ensinou que com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades, o Superman deveria mostrar que poder incomensurável traz responsabilidade incomensurável, em oposição ao poder absoluto que corrompe absolutamente.
Toda a imagética que envolve o Superman no inconsciente coletivo dispensa a conquista da confiança como contrapartida para ele agir como age (afinal, heroísmo sem desprendimento é prática mercenária, perde o sentido).
Praticamente o oposto do que é visto neste filme. A conquista da confiança é o tema que Snyder e Goyer tentam, a todo custo, trabalhar em seu subtexto. E que leva ao pior momento do roteiro, quando Clark assiste impassível à morte de seu pai adotivo.
Na grande maioria das interpretações do mito Superman, seja nos quadrinhos ou no cinema, Jonathan Kent morre de ataque cardíaco com a função de ensinar uma lição à Clark: mesmo com todo o poder de sua fisiologia alienígena, ele não é onipotente, nem onipresente, o que valoriza ainda mais as vidas que ele consegue salvar.
Em O Homem de Aço, e aqui vai mais um SPOILER, Clark opta por não salvar seu pai de um tornado para provar que CONFIA nele e em seu medo de revelar o filho para o mundo. Jonathan Kent morre pela inação de seu filho, algo injustificável. E foi aí que a trama me perdeu como cinespectador. Pois se este é um Superman que pode salvar uma pessoa, talvez a mais importante em sua vida, e decide conscientemente se esconder atrás das crenças do pai para não agir, temos o verdadeiro oposto do significado da palavra herói. Pior: temos alguém que nega os próprios instintos de forma imoral e incompreensível, uma criança superpoderosa que se nega a amadurecer e a fazer o que é certo. Porque, às vezes, fazer o que é certo é quebrar regras e convenções.
A última cena, que inclusive aparece num dos trailers, chega a ser involuntariamente irônica: o retrato da inocência perdida. Você olha praquele garotinho com uma toalha vermelha esvoaçante fazendo as vezes de capa e sente pena. Pena por ver todo aquele potencial disperdiçado, pena por saber no que aquele garotinho irá se transformar.
E, que fique claro, não é preciso se ater aos quadrinhos para fazer um bom filme do Superman. Não é esse o erro de Snyder, Goyer e Nolan. A própria mitologia dos quadrinhos é uma salada russa, com cada roteirista fazendo questão de ignorar ou subverter elementos que acreditam não contribuir para as histórias que pretendem contar, como sempre costumo frisar.
E a desculpa de que o Super é um personagem “difícil” de se trabalhar, principalmente para tempos “sombrios” e num mundo mais “cínico”, também não cola. Basta ler as histórias incríveis e emocionantes que autores como Grant Morrison, Kurt Busiek, Geoff Johns, Alan Moore e Mark Waid já criaram nos quadrinhos. Ou o próprio Superman – O Filme, aquele mesmo de 1978, com Richard Donner na direção e Christopher Reeve no papel principal: um filme que funciona até hoje. Basta querer fazer e saber contar uma boa história.
Em suma, o Superman é um herói que precisa funcionar para todos os gêneros, crenças e idades (meu filho, apaixonado pelo Super-Homen, é um que não vai poder chegar perto desta nova encarnação até ter idade suficiente para compreender uma série de coisas, o que só posso lamentar). Para isso, é preciso criar histórias com alma, o principal ingrediente que falta a esse homem de aço. Aliás, é uma pena que o longa-metragem não tenha conseguido capturar o espírito que está no belíssimo trailer.
Zoaro o superomi!
Pois é…
[…] disposto a fazer a coisa certa custe o que custar, enérgico mas não inconsequente. E menos detalhes estapafúrdios, por […]