…I wanna dance like common people…
De tempos em tempos, surgem obras que conseguem capturar à perfeição o espírito de uma época e a essência da paixão despertada pela música pop (em seu sentido mais amplo, oposto à erudição). São obras que traduzem esses aspectos na frieza muda das letras ou no sincretismo reducionista de filmes, e os elevam a outro patamar: o de lendas.
Não à toa, essas obras adquirem o status de referência sobre a pauta em questão e funcionam como máquinas do tempo. Alguns exemplos:
- Podem ser livros de ficção que tratam do vício em discos e da dificuldade em amadurecer, como em Alta Fidelidade;
- Biografias que resgatam a história e o cenário musical vivenciado por ídolos, como A Ira de Nasi ou Cash;
- Livros-reportagens que traçam o panorama de uma época e indústria e de seus bastidores, trazendo perspectiva e memórias à tona, como Cheguei Bem a Tempo de Ver o Palco Desabar ou Dias de Luta —ambos de Ricardo Alexandre;
- Filmes que resgatam e dramatizam momentos definidores da história rocker, como A Festa Nunca Termina e O Lixo e A Fúria.
E, claro, histórias em quadrinhos. Nesta última categoria, entram duas obras que devem pintar em 2014 no espinafrando.com: Red Rocket 7, uma mistura deliciosa de música e ficção científica por Mike Allred, e Cash, outra biografia do Homem de Preto, em quadrinhos, pelo alemão Reinhard Kleist. E, também, a dica duca de hoje: Phonogram.
porque é bom
Phonogram são, na verdade, duas minisséries produzidas pela dupla britânica Kieron Gillen e Jamie McKelvie, publicadas pela Image em 2006 e 2008. Ambas inéditas no Brasil, mas disponíveis no ComiXology.

Numa definição preguiçosa, dá pra dizer que Phonogram trata basicamente dos Phonomancers (ou fonomantes —fica a dica pra quem for traduzir pro português), pessoas que fazem magia em rituais que utilizam música pop. Mas é claro que isso seria uma forma obtusa de tratar um dos melhores quadrinhos que li no ano.
Phonogram vai muito além disso: é um exercício que desbrava a alma das pessoas aficcionadas por música pop, em todas as suas formas: do indie ao rock, do clássico ao obscuro. De quem curte hits pra dançar a quem enxerga revolução social mas letras de canções de 3 minutos e 3 acordes. De quem se apega a uma única banda ou estilo e vive em função desses ídolos de barro a quem consome o vasto cardápio cultural com apetite onívoro. De quem leva o negócio da música a sério demais a quem apenas se diverte escutando um som.

Tudo isso embalado em traços que lembram uma mistura do quadrinho europeu de linhas leves com Katsuhiro Otomo (Akira) e textos ágeis, cínicos e joviais, coalhados de referências musicais.
Tanta variedade também se reflete nas histórias e na forma como são construídas.
No volume 1 (todo em Preto & Branco), intitulado Rue Britannia, o foco está em David Kohl, phonomancer veterano devoto do britpop, que está às voltas com uma garota fanática por Richey James —vocalista desaparecido dos Manic Street Preachers—, uma deusa temperamental e sua seita e o colapso de toda a realidade como a conhecemos. Tem uma pegada deliciosa do tipo “Constantine encontra Alta Fidelidade“.

No volume 2 (todo colorido por Matthew Wilson), intitulado The Singles Club, temos uma brincadeira com os dois significados de Singles em inglês: aqueles disquinhos com 1 música de cada lado e a palavra para solteiros. Esqueça a profundidade mitológica de Rue Britannia e embarque numa noite de curtição num Club com 3 regras: só toca músicas sem cantores masculinos, todos têm que dançar, e mágica é proibida. Mas atenção: como em toda balada, as aparências enganam, e a curtição pode revelar uma série de corações partidos. O que temos aqui é o tipo de narrativa popularizada por Tarantino em Pulp Fiction, uma mesma história contada de diversos pontos de vista que convergem num final redentor. Em cada uma das 7 edições, acompanhamos jovens phonomancers (entre eles, o já “velho” conhecido David Kohl) por um período de tempo numa mesma noite, cada um lidando com seus próprios fantasmas e relações com a música e entre si.

porque é duca
Phonogram é duca porque consegue captar a essência de ser jovem em constante formação, de forma bem humorada e aventuresca, além de trazer inúmeras referências para qualquer um apaixonado pela música pop perder horas e horas tentando identificar cada uma.
De quebra, tanto o volume 1 quanto o volume 2 trazem “faixas bônus”, incluindo making of e glossários detalhados, cheios de verbetes impagáveis como esses 2:
- Gigantic – Pixies single about how awesome big cocks are.
- Smiths, The – Start with The Queen is Dead. I’m not going to explain anymore. Go listen! Now! Go! Shoo! Shoo! We’ll wait for you.
Para ler embalado por Pulp, Blur, Pixies, Smiths, Stone Roses, Happy Mondays, Joy Division, Beatles, Rolling Stones…
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PHONOGRAM VOL. 1: RUE BRITANNIAPublisher: Image |
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PHONOGRAM VOL. 2: THE SINGLES CLUBPublisher: Image |