Difícil deixar esse filme passar em branco. Já está em cartaz há algumas semanas, e inclusive por isso é mais do que recomendado correr para conferir no cinema.
Azul é a Cor Mais Quente, do diretor Abdellatif Kechiche, causou alvoroço no Festival de Cannes de 2013. Primeiro, por ter conseguido uma tríplice Palma de Ouro. Tudo porque o presidente do júri desta edição, Steven Spielberg, julgou que o mérito de realizador do filme não cabia somente ao diretor, mas também às suas duas protagonistas, as atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux. Os três subiram ao palco e receberam as três Palmas.
Mas houve um outro motivo pelo frisson no festival: as atrizes e o diretor trocaram farpas em entrevistas, onde as moças disseram ter sofrido bastante nas mãos de Kechiche, inclusive nas já famosas cenas de sexo.
Mas vamos aos fatos: “Azul” é uma obra extraordinária. A partir da HQ de mesmo nome, de Julie Maroh (já publicada no Brasil pela Martins Fontes), Kechiche constrói um pedaço da vida de Adèle (não por acaso, Adèle Exarchopoulos), uma adolescente confusa quanto aos seus desejos e descobertas. Em plena puberdade, ela tenta descobrir o que ela realmente quer; e isso nem sempre é fácil.
Depois de uma tentativa mais racional de ficar com um dos garotos mais almejados da escola, ela sente —ou melhor, não sente— que é isso que a completaria. Dispensa o rapaz, e continua titubeante em sua busca.
Quando ela depara-se com uma charmosa e enigmática garota de cabelos azuis, Emma (Léa Seydoux), enquanto cruza a rua, Adèle simplesmente perde o eixo. E justamente ali talvez esteja o que ela tanto procura.
Ao contar o romance entre duas belas garotas, Kechiche poderia celebrar o lesbianismo, tal como fetiche óbvio de 99% da população masculina. Ou poderia instituir um “filme de gueto”, que retrata o homossexualismo sob o verniz de algum discurso político. Mas, felizmente, ele foge dessas duas armadilhas com louvor.
Azul é a Cor Mais Quente não é um filme homossexual, um romance gay. Aqui, dispensa-se rótulos. O fato de serem duas mulheres —e não um casal heterossexual— não determina o que o filme é. O que mais se investiga aqui é a natureza da paixão, do amor, seus obstáculos, frustrações e decepções. E isso independe da orientação sexual. Quem já amou —e quebrou a cara— entenderá perfeitamente o que se passa.
Na verdade, a relação homossexual justamente escancara que isso ocorre com qualquer pessoa, sem discriminação. Se fosse um homem e uma mulher, a mensagem seria percebida com menos força. E, acima de tudo, “gay” certamente não define e nem limita Adèle.
A duração épica, de quase 180 minutos, pode parecer cansativa. E em alguns momentos, é. Mas Kechiche busca o ritmo da vida, tão comum a todos nós. A fase da conquista, da paixão, da rotina e assim por diante. E todas essas fases têm seu tempo.
As famosas cenas de sexo são intensas. MUITO intensas. A mais comentada é longa, cerca de 7 minutos (que reza a lenda, demorou 10 dias para ser filmada). Para alguns, um exagero, apenas uma necessidade voyeur. Mas não é. A exposição quase pornográfica desses dois corpos faz parte das descobertas pessoais e sexuais de Adèle. O toque, a pele e a carne são inerentes ao amor. O sexo é parte integrante de uma relação, ao contrário do que se faz crer em tantos filmes hollywoodianos assépticos.
E enquanto acompanhamos o crescimento da personagem Adèle, nos deparamos com a atuação intensa e emocionante desta atriz chamada Adèle Exarchopoulos. Do início ao fim, vê-se uma performance que hipnotiza e toca o espectador. Cada respiração, cada olhar, toda e qualquer intenção de Exarchopoulos é percebida nos mínimos detalhes, como se fosse o fragmento da vida de alguém que você conhece. Um vulcão emocional, que explode tanto nas cenas cotidianas como nas sexuais, e também nas mais dramáticas. Isso sem falar em sua beleza, que magnetiza o olhar. Se sua atuação confunde-se com a própria atriz, não importa. O que ela consegue em seu primeiro grande papel é algo que muito atores não conseguem em 20 anos de carreira. O quanto isso é mérito do método torturante de Kechiche, jamais saberemos.
A platéia torna-se íntima de tudo que diz respeito às duas Adèles, pois a câmera de Kechiche está sempre grudada em sua musa. Seydoux também atua de forma memorável, mas é impossível negar que Exarchopoulos acaba levando o filme nas costas (até porque o título original é “A Vida de Adèle – Capítulos 1 e 2“). Se ela não funcionasse, tudo afundaria.
Azul é a Cor Mais Quente, na verdade, são três histórias de amor. Primeiro, a de Adèle e Emma. Segundo, a de Exarchopoulos e Seydoux, que criam uma química e cumplicidade raramente vistas no cinema. E por último, a da câmera e seu objeto de desejo. Que na verdade, acaba sendo um triângulo amoroso, cujo último vértice é o espectador.
Para arrematar, ouça a música do trailer, I Follow Rivers, que tem seu momento perfeito no filme: Adèle dançando em seu aniversário, aproveitando o momento, como se mais nada existisse. A poesia de Kechiche também está nos detalhes.
E uma cover bem diferente da banda belga Triggerfinger: